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Crónica emocionada de um dia em que a festa da Liberdade voltou a sair à rua e logo a triplicar – só na Avenida, em Lisboa, houve três desfiles diferentes

Aviso já que escrevo este texto com um cravo na lapela, aquele que me acompanhou neste dia tão intenso de emoções e muitos arrepios. E aviso-o para que se entenda que esta crónica foi feita com o coração bem perto da boca e que agora ele teima em escapar para estas linhas. Perdoem-me a liberdade de esquecer por uns momentos a objetividade que me é devida, mas hoje é dia para isso. E vou tentar não abusar.

As máscaras foram a grande diferença deste desfile. De resto, não faltaram cravos vermelhos, cantigas da revolução e alegria como em anos anteriores

Adiante, que ainda nem são três da tarde e já estou no Marquês, a torcer para que as pingas que me molham o bloco de notas não aumentem de intensidade. Correu bem, muito bem, avanço já nesta informação meteorológica.

Quando olho para o cartaz da Iniciativa Liberal (“A Liberdade não tem dono”) colocado estrategicamente neste ponto de encontro, lembro-me que no Saldanha estão umas dezenas de simpatizantes, zangados com a organização do desfile do 25 de Abril em modo pandemia, a receberem impermeáveis transparentes, amachucados dentro de uma bolinha azul, mas só depois de lhes medirem a temperatura. Bom merchandising, mas ninguém lhes deve ter dado uso, já que o sol quis iluminar a Avenida durante a tarde.

No Parque Eduardo VII vejo uma ilha de resistentes. Lá dentro, que não é dentro, mas fora, onde está um palco montado, não se vê nem uma máscara e o ambiente sente-se festivo. Pelo relvado fora, estenderam-se balões brancos e pequenos cartazes contestatários da crise pandémica (“A liberdade de expressão protege-te e protege os outros”). António Nogueira, líder do movimento Cidadania XXI, criado em outubro como apartidário, afina os últimos pormenores para as celebrações no palanque, por onde hão passar nomes tão distintos como Joana Amaral Dias ou Manuel João Vieira (que já estivera duas horas a tocar no Capitólio, num espetáculo matinal gratuito, chamado Nostalgia e Utopia).

“Tenho o nome na guest list”

Deixemo-los na relva que a hora H aproxima-se e já se sente muita expectativa no ar, depois de um ano à míngua. Recebo vários telefonemas a indagar como param as modas por aqui. A todos respondo da mesma forma: “Tudo calmo, podem vir.”

Myriam Zaluar, 51 anos, não precisou desse telefonema para estar convencida a vir da margem sul para a Avenida, embora se tenha sentido completamente perdida no meio de tanta informação contraditória sobre a forma de participar no desfile. Pelo sim, pelo não, ontem cumpriu mais uma regra – mandou um e-mail para o endereço divulgado pela Associação 25 de Abril e inscreveu-se, dando todos os seus dados. Já percebeu agora que não há ninguém a quem mostrar como fez tudo by the book, nem a quem atirar a deixa treinada: “Tenho o meu nome na guest list.” Apesar da piada que trazia na ponta da língua, Myriam acordou “triste”, por ter de celebrar a Liberdade, presa atrás de uma máscara e com muitas contingências, outra vez. Tristezas à parte, segue à desfilada de cravo em riste.

José Guerreiro, alentejano a viver em Lisboa há décadas, nunca falhou uma comemoração do 25 de Abril

Quase sem dar por ela, passa pela comprida faixa do MURPI, movimento de reformados. José Guerreiro, 79 anos, orgulhoso alentejano e ex taxista, é um dos que vai no grupo. “Nunca falhei um 25 de Abril, nem mesmo por causa desta muleta. E hoje cá estou, para ir até onde nos deixarem.” Este ano, a organização montou o palco nos Restauradores para o desfile ser mais curto. Mas fica apenas 350 metros acima da zona onde costuma estar em anos anteriores, na praça do Rossio, bastante mais ampla do que esta. Enquanto espera pela ordem de marcha, José Guerreiro debita quadras do poeta Aleixo para cada contexto da conversa.

Estava tão distraída a ouvi-lo que quase perdia a animação do Coletivo Andorinha, estacionado uns metros à frente, por entre batuques e tambores, toda a tarde a envolver as pessoas nos ritmos brasileiros que são impossíveis de ignorar. Dancei pela primeira vez nesta tarde e senti o arrepio inaugural, só que esmoreci quando me deparei com a faixa que acusa Bolsonaro de ser genocida – o programa Vozes de Fibra, uma campanha internacional organizada pela Frente Internacional Brasileira, aposta em denunciar o culpado pelo genocídio do povo brasileiro.

Onde estão as Toupeiras?

À falta dos cartazes mais bonitos destes desfiles, criados pelas artistas do coletivo As Touperiras, que este ano optaram por não descer a Avenida a esta hora (fizeram-no de manhã para captarem as imagens da sua manifestação virtual), fico a apreciar as obras dos Pioneiros de Portugal, associação de ocupação de tempos livres de jovens ligada ao Partido Comunista. Enquanto uma monitora grita ao altifalante para os mais novos do desfile darem passos à frente, atrás ou para o lado, ponho-me ao lado de João, 10 anos, e ele diz-me que é uma presença assídua na Avenida desde que nasceu, enquanto agarra, orgulhoso, uma cartolina amarela, em que se lê: “Liberdade é poder dizer não vou à guerra.”

A pandemia não conseguiu calar os gritos de ordem: “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!”

A organização vai na dianteira, como se tornou habitual. Mas não é costume ir dentro de um enorme quadrado definido por panos vermelhos, segurados por voluntários. Jerónimo de Sousa, o número um do PCP, acena ao povo, desde este seu espaço VIP, em que nem faltam seguranças com ar de seguranças. Também lá vai o cineasta António Pedro Vasconcelos, entre outras personalidades mais difíceis de reconhecer por trás da máscara. “Vão para o passeio”, pedem, ou melhor, ordenam, para deixar passar a procissão.

À frente de tudo isto seguem os dois tanques que me habituei a ver estacionados no Rossio, quando chego ao final da manifestação depois de horas a descer, em anos ditos normais. Não sou grande fã de material de guerra, mas ao vê-los em movimento não consigo evitar o regresso da pele de galinha. E também esfrego muito os olhos, mas não é da emoção – andam imensos pólens no ar e muita gente se queixa disso. Mesmo assim, ainda leio bem o cartaz escrito à mão, que decreta: “A Liberdade sai à rua e sempre sairá, mesmo que nos digam para ficar em casa.”

Este homem estátua hoje está de Portugal. Por cada moeda que recebe, dá um chupa-chupa

Era nesta altura que saíria do desfile para integrar a fila das farturas, caso as houvesse. Mas aqui ninguém morre à fome, mesmo que o Estado de Emergência nos feche tudo a partir da uma da tarde ao domingo. Há águas, gelados e castanhas a vender-se na rua. E o quiosque do fundo da Avenida tem o postigo aberto e muita gente para atender.

Se a esta altura ainda existirem dúvidas de que este dia é para ser vivido em festa, podem-se contar as trotinetas que passam em modo passeio ou os skates, por enquanto arrumados debaixo do braço. Para culminar, já nos Restauradores, aparece-me à frente um homem estátua, com o seu fato de Portugal, concebido com bandeiras nacionais e caras de Cristiano Ronaldo. Por cada moeda deixada no chapéu pousado no chão, Rafael Cardoso, 65 anos, retribui com um chupa. Quando a comitiva da organização se aproxima do seu pedestal, é obrigado a afastar-se para o lado direito da rua – mas não desiste.

O fim nos Restauradores

Nada de desfocar ou baixar a guarda. É por isso que se ouve uma voz sonante, vinda da tenda da organização, a lembrar “a importância de nestas comemorações manter as máscaras de proteção e o distanciamento de dois metros.” Não fora isto – e o facto de a manifestação não seguir para lá dos Restauradores – e quase me sentia em 2019 outra vez, ajudada pela entoação da Grândola Vila Morena a tantas vozes e com tantos cravos vermelhos apontados em direção ao céu azul. Fecho os olhos para sentir o momento. A seguir, e antes de a organização mandar a população dispersar, às 16h20, tudo canta o hino nacional. Novo momento arrepio.

Os liberais teimaram em manter uma manifestação à parte, mas não passaram do cimo da Avenida

Volto as costas ao monumento aos Restauradores e ponho-me agora a subir a Avenida, constatando como ela está cheia até lá acima ou até aonde a minha vista alcança. Ainda não tinha reparado na enorme faixa vermelha do movimento 1% para a Cultura. Paro aqui, aproveitando para ouvir mais Zeca Afonso e dar mais uns passinhos de dança.

Quando os diferentes grupos inscritos na manifestação saírem dos seus lugares, a Iniciativa Liberal há de aparecer junto ao Marquês do Pombal, formando uma mancha azul com as suas bandeiras, mas nunca passará do primeiro quarteirão – a Avenida permanece cortada e ainda se veem muitas pessoas a vaguear, algumas dignas de registo, como a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, com a família, Catarina Martins a cantar a Grândola junto ao Bloco de Esquerda ou Joacine Katar Moreira vestida de capulana a integrar um grupo anti-facista, anti-racista e feminista.

O adeus aos tanques

Os tanques também estão em marcha invertida. À sua passagem ouvem-se palmas e os militares acenam lá de cima. É então que sou atraída por outra melodia do Zeca, O que Faz Falta, e farto-me de dançar e cantar a plenos pulmões. Quando pensava que o grupo de músicos que estava sentado num banco da Avenida iria acabar com este espetáculo improvisado, eis que ele segue para outra e mais outra, num enorme reportório do cancioneiro revolucionário. Espero por mais uma sessão de Grândola para saber o que se está a passar aqui.

Um coletivo de músicos animou o povo durante horas, enquanto cantava cantigas que marcam a Revolução dos Cravos

Enquanto falo com Rui Rebelo, 48 anos, por entre guitarras e adufes e uma grande coluna de som que já perdeu o pio, aproxima-se uma senhora a agradecer com paixão e a rematar: “É que eles obrigam-nos a vir para a rua, gritar.” Por fim, o músico lá consegue explicar que se juntou a Pedro Branco (filho de José Mário Branco) e a outro amigo do meio artístico (que não veio do Meco para aqui estar hoje, pois pensava que o tempo não iria ajudar), criaram uma canção especialmente para este dia, intitulada Para Sermos Livres. Patrícia Fina canta muito bem, dando o toque final perfeito a esta performance.

“Já há muito tempo que penso em trazer uma guitarra e organizar um coro informal para descer a Avenida neste dia, acho que dá outra alegria à celebração. Desta vez aconteceu. Para o ano ainda há de ser melhor, porque hoje não passámos daqui [ao pé da cervejaria Ribadouro]”, conta o porta-voz do coletivo. Não passaram, mas a culpa foi dos manifestantes que nunca mais os deixaram sair daqui, tal a alegria que lhes proporcionaram. É o caso de Myriam Zaluar, que encontrámos “triste” nas primeiras linhas deste texto. Vemo-la a debitar as letras das músicas de cor e dançar livremente e percebemos logo que o seu discurso vai ser alterado. “Cheguei triste, mas saio satisfeita”, corrige.

Myriam Zaluar chegou desanimada, farta das regras da pandemia, mas no final do dia a disposição era outra

Regresso a casa quase às seis, de coração cheio – é por isso que ele insiste em invadir esta prosa. Já no carro, e de relance, topo outro grupo de pessoas que desce a Avenida. Preciso de ir ao do início desta reportagem para me lembrar que o líder do Cidadania XXI avisou que desfilariam por esta hora, quando os outros já não andassem por aqui. Haja liberdade para todos e espaço na Avenida para tanto corrupio de manifestações.

E, claro, nunca mais dou nada por garantido, muito menos as emoções proporcionadas por este dia.

in https://visao.sapo.pt/opiniao/2021-04-25-25-de-abril-descer-a-avenida-e-voltar-a-subir-e-descer-outra-vez-por-entre-encontros-cantorias-e-muitos-arrepios/