Afinal, estamos ou não a enfrentar uma guerra? A expressão tem sido muito utilizada para descrever a pandemia e a situação nos hospitais. Mas Nelson Olim, médico que tem passado boa parte da vida em cenários de guerra, não tem dúvidas: Portugal ainda está muito longe disso.
Ao longo de mais de 25 anos, a carreira de Nelson Olim já passou por inúmeros cenários de catástrofe e de guerra. Iémen, Sudão do Sul, Médio Oriente e Somália são apenas alguns exemplos. Perante a experiência no terreno, o especialista não hesita: “guerra é um cenário um pouco exagerado”. E sublinha a importância da perspetiva: “felizmente, ainda há uma casa para voltar ao fim do dia; temos água nas torneiras, temos eletricidade, a cadeia de distribuição alimentar funciona, não andamos armados na rua com medo de ser alvejados… coisas que não acontecem num cenário de guerra”.
Nelson Olim sublinha que alguma medidas que têm sido tomadas, mostram que o sistema ainda tem margem de manobra: “temos hospitais de campanha, os hospitais privados, as transferências de doentes a nível nacional; as transferências internacionais até, em última análise; utilizar estabelecimentos tradicionalmente vocacionados para o alojamento e transformá-los em hospitais temporários. Temos ainda uma margem de manobra, que numa guerra não há! Temos uma série de cartas que podemos jogar, antes de chegarmos à situação em que largamos os doentes prioritários e apostamos apenas naqueles que têm grande probabilidade de sobrevivência. Ainda não chegámos a essa fase. E não creio sequer que vamos lá chegar”.
“Nunca viveram um cenário de guerra”
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Este médico, com formação em planeamento de emergência, não vê qualquer “benefício social” na dramatização do discurso, porque “deixa toda a gente em pânico”, e diz mesmo que “a maior parte das pessoas que se referem a isto como um cenário de guerra, nunca viveram um cenário guerra. Têm uma ideia!”.
Nelson Olim não desvaloriza o momento que se vive nos hospitais portugueses, algo que descreve como uma situação “extremamente complexa”, que muitos profissionais de saúde vivem pela primeira vez, daí que seja “perfeitamente compreensível” esta reação um pouco “mais emocional”. E arrisca: quem nunca viveu um cenário de guerra, “tem dificuldade em perceber como nós ainda estamos tão bem comparando com o quão mal as coisas poderiam, eventualmente, ficar. Porque, muitas vezes, (…) o poço é muito mais fundo do que parece. Nós não batemos no fundo do poço”.
Além disso, o médico sublinha que “a vacinação já começou, há estratégias de tratamento relativamente eficazes, o que também ajuda.
Aprender com a crise
Quase sempre em “missão” pelo mundo, Nelson Olim esteve recentemente num hospital português, onde pôde testemunhar a luta dos profissionais de saúde contra a covid-19. Encontrou “uma situação generalizada de exaustão”, mas também defende que o “drama” que se vive, tem muito a ver com um sistema frágil desde sempre e que a pandemia só veio agravar.
“Em Portugal, quando se abre um hospital, passam 10 anos sobre o planeamento inicial. À data da abertura, já está “armadilhado” à partida. Mas (…) continua a haver uma ameaça terrorista, a possibilidade de desastres tecnológicos, de desastres naturais”.
Por isso, Nelson Olim espera que se aprenda com esta crise: “que se tirem ilações, que se repense a forma como o sistema de saúde está planeado”.