A maior parte dos doentes vêm desviados de hospitais que não têm capacidade para os receber, mas muitos nem deviam ter ido parar às urgências. Profissionais dizem que é preciso mudar protocolos.
As ambulâncias acenderam as luzes como se estivessem em marcha de urgência, mas sem sirenes e, na verdade, sem estarem em marcha. O protesto foi na noite de quarta-feira, mas 24 horas depois o cenário repetia-se: dezenas de ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria com os doentes ainda no interior. Os bombeiros e pessoal das ambulâncias queixam-se, o hospital diz que recebe doentes não urgentes e que a carga aumentou depois do problema com a rede de oxigénio do Hospital de Amadora-Sintra. O Amadora-Sintra, por sua vez, diz que foi para lá do que podia para servir os doentes.
O que justifica que haja tantas ambulâncias à porta de um dos maiores hospitais da capital?
Hospital de Santa Maria diz que 85% dos doentes não são urgentes
Esta quinta-feira, havia, mais uma vez, cerca de 40 ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, conforme noticiado pela rádio Observador. A situação deve-se, em parte, à situação no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (HFF, Amadora-Sintra), que não está a receber doentes encaminhados pelos CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) enquanto não estiver resolvido o problema com a pressão nos internamentos e o sistema de fornecimento de oxigénio. “70% dos encaminhamentos feitos pelo CODU são de fora da área de influência do Hospital de Santa Maria”, diz fonte oficial do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte ao Observador. “Quase metade dos utentes são transportados de ambulância, mas destes só 15% apresentam situações que justificam o recurso a uma urgência hospitalar.” Comunicado do Hospital de Santa Maria
Desde o início de janeiro que, quando há picos de encaminhamento pelo CODU, se podem juntar umas 10 ambulâncias à porta das urgências para doentes respiratórios — na urgência central, o fluxo de doentes tem sido normal —, diz fonte do hospital. Os doentes são triados à chegada, às vezes ainda dentro da ambulância: os emergentes entram logo — às vezes diretamente para os cuidados intensivos —, os doentes graves entram com prioridade, depois, devido ao elevado número de doentes que recorrerem ao hospital, os não urgentes acabam por ter de esperar várias horas nas ambulâncias.
A urgência de doentes respiratórios cheia de situações não urgentes pode estar a montante, no encaminhamento feito pela linha SNS 24 ou pelo CODU. “Quase metade dos utentes são transportados de ambulância, mas destes só 15% apresentam situações que justificam o recurso a uma urgência hospitalar. Os restantes 85% são triados com prioridade verde ou azul, representando uma sobrecarga evitável, na medida em que o local de atendimento previsto para estas situações são os centros de saúde, que dispõem de um atendimento específico para estes doentes”, referiu o hospital em comunicado de imprensa.
O HSM deixa um apelo à população para que só recorra às urgências dedicadas às infeções respiratórias (que incluem a infeção com SARS-CoV-2) “em situações justificadas” e recomenda que vão ao centro de saúde quando apresentarem sintomas ligeiros. Agora, o hospital vai ter equipas do INEM e da proteção civil a fazer a triagem dos doentes que cheguem de ambulância: os que não forem considerados urgentes serão encaminhados para os centros de saúde de Sete Rios e de Odivelas, disse Daniel Ferro, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. https://www.youtube.com/embed/gQQ7xNXBB3s?feature=oembed
O presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares, por sua vez, diz que se os doentes não urgentes são encaminhados para as urgências dos hospitais não é culpa dos bombeiros. “Eles vão ao chamamento feito pelo 112 que depois passa pelo CODU”, esclarece. Depois, são os CODU do INEM que decidem para onde levar os doentes.
A Sociedade Portuguesa de Emergência Pré-Hospitalar (SPEPH) defendeu, em nota enviada à Lusa, a necessidade de “reorganização do atual Sistema Integrado de Emergência Médica” (SIEM), considerando que o cenário de urgências de hospitais com filas de espera de ambulâncias é uma consequência de “protocolos e orientações desadequadas” e que “deveriam ser adaptados à situação que o país atravessa” com o agravamento da pandemia de Covid-19 ao longo de janeiro.
Contactada pelo Observador, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT) salienta ainda que “todos os invernos há aumento de procura dos serviços de urgência hospitalares devido a uma maior incidência de doenças respiratórias” e que “os utentes devem primeiramente contactar a Linha SNS 24”.
Hospitais da periferia dizem que há uma distribuição desequilibrada dos doentes
Os hospitais da margem norte e sul do rio Tejo, que rodeiam a cidade de Lisboa, queixam-se da distribuição desequilibrada dos doentes respiratórios, opondo os hospitais periféricos (sobrecarregados) aos hospitais do centrais (alegadamente com uma carga menor). Estas unidades hospitalares dizem apresentar “taxas de esforço do seu internamento de doentes Covid-19 em enfermaria, no dia 22 de janeiro, situadas entre os 45% e os 71%”, enquanto os centros hospitalares universitários de Lisboa Central (que inclui o Hospital de São José) e Lisboa Norte (que inclui o Hospital de Santa Maria) teriam ocupações de 25% e 32,1% na mesma data. A única exceção seria o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, que apresentava uma taxa de esforço de 50,6%.
As desigualdades sentidas levou os responsáveis do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo, Centro Hospitalar de Setúbal, Hospital Beatriz Ângelo (Loures), Hospital Garcia de Orta (Almada), Hospital José de Almeida (Cascais), Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) e Hospital de Vila Franca de Xira, a escrever uma carta, a que o jornal i teve acesso para ARS-LVT, responsável por fazer a gestão da ocupação das camas nos hospitais da região.
Questionada sobre se as queixas destes hospitais tinham fundamento e o que estava a entidade a fazer para resolver a situação, a ARS-LVT respondeu que os centros de saúde da área têm 27 Áreas Dedicadas para Doentes Respiratórios – Comunidade, “os quais têm vindo a alargar os seus horários de funcionamento e a reforçar as suas equipas”, mas não deu qualquer informação sobre as reais taxas de esforço ou camas alocadas a doentes Covid-19 nos hospitais centrais.
A taxa de esforço, que representa a proporção de doentes Covid-19 internados no total de camas hospitalares a cada dia, “não é um conceito oficial”, explicou o Ministério da Saúde ao Observador. “Esta taxa não dá a visão real da ocupação hospitalar, uma vez que apenas considera os doentes Covid-19 para o total das camas das instituições.” Ou seja, não mostra qual é a taxa de ocupação real dos hospitais, com doentes Covid-19 e não-covid.
O Ministério da Saúde explica com números: os hospitais não especializados do Serviço Nacional de Saúde tinham cerca de 18.600 camas de enfermaria (camas médico-cirúrgicas) e de 1.270 camas de cuidados críticos, no dia 26 de janeiro. “Dessas, cerca de 6.100 camas de enfermaria e 850 de cuidados críticos encontravam-se afetas à Covid-19”, refere a resposta oficial do ministério. Estavam ainda, contratadas com o setor privado, social e militar 538 camas para doentes Covid-19 e 443 camas para doentes não-covid. No dia 26 de janeiro, o boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde dava conta de 5.707 internados em enfermaria e 765 nos cuidados intensivos.
Um terço das camas do HSM, tal como em outros hospitais, deverá ficar reservada para os serviços de obstetrícia, pediatria, psiquiatria ou queimados, explica fonte oficial do HSM, acrescentando que são “o hospital de referência para mais de 17 áreas de especialidade para toda a região sul”.
O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (HSM e Hospital Pulido Valente) tem cerca de 1.ooo camas de enfermaria médico-cirúrgicas e cuidados intensivos. No HSM havia, esta quinta-feira, 273 camas de enfermaria e 55 nas unidades de cuidados intensivos destinadas a doentes Covid-19 — mais do dobro do que tinham a 10 de janeiro, 160 no total —, estando ocupadas 261 de enfermaria e as 55 de cuidados intensivos (dados de quinta-feira de manhã). Fonte do hospital diz que continuam a aumentar a capacidade: esta quinta-feira foram mais 24 de enfermaria, até ao fim de semana mais quatro de cuidados intensivos e há mais planeadas na próxima semana. Também na urgência vão aumentar a capacidade de 33 para 51 boxes individuais.
Aumento do número de casos diários
Com 16.432 novas infeções e 303 mortes, Portugal voltou a ultrapassar os máximos diários esta quinta-feira. Só na região de Lisboa e Vale do Tejo registaram-se 8.621 novos casos e 142 óbitos — mais do dobro do que no Norte, com 4.057 novos casos e 60 mortes. Uma percentagem destes novos casos acabarão por ter de receber tratamento hospitalar. Esta quinta-feira registavam-se 6.565 internamentos em enfermaria, dos quais 782 estavam nos cuidados intensivos.
Portugal registou, esta quinta-feira, menos 38 pessoas internadas, mas a última vez que o número de internados tinha diminuído tinha sido a 1 de janeiro, quando foi registado um total de 2.806. Não é por isso de estranhar que a pressão nos hospitais tenha estado sempre a subir também.
O Hospital de Amadora-Sintra é um bom exemplo disso. O número de doentes em internamento a requerer oxigénio chegou a um número tão alto que o sistema não conseguiu aguentar a pressão e os doentes tiveram de ser transferidos. 82 doentes transferidos só por causa do problema na rede de abastecimento, mas o hospital já andava a transferir 15 a 20 doentes todos os dias, diz fonte do hospital. “Estamos a pagar o preço de tentar salvar o máximo de doentes. Fomos mais para lá, mas qual era a alternativa.”
No dia 26 de janeiro, o HFF tinha 363 doentes internados. Desde esse dia, já transferiu 102 doentes, maioritariamente doentes estáveis que terão alta em breve. Mas as transferências não vão parar. Mesmo com o CODU a desviar os doentes desta região geográfica para outros hospitais, o Amadora-Sintra tinha, esta quinta-feira, 323 doentes Covid-19 internados. “O cenário mais grave previa 120 doentes Covid-19 internados. Mas na semana passada abrimos 90 camas e, agora, mais 90”, diz fonte do hospital. Foi por isso que se juntaram na carta à ARS-LVT para destacar os desequilíbrios. O hospital tem, no total, 800 camas. Só nos cuidados intensivos tem 32 para doentes Covid-19, 10 para doentes não-covid, quatro para doentes com problemas cardíacos e mais algumas na pediatria.
A ministra da Saúde reuniu com as administrações dos centros hospitalares da região de Lisboa e pediu que fossem abertas todas as camas possíveis, como noticia o Diário de Notícias. Reuniões como esta, com os hospitais, as ARS e a Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19 (CARNMI), “têm ocorrido com frequência e normalidade, de forma a acompanhar a evolução da pandemia, planear a resposta e o funcionamento em rede”, garantiu o Ministério da Saúde ao Observador. O apelo da ministra não terá sido uma requisição formal, mas a repetição de um pedido já feito outras vezes. E os hospitais têm dado resposta a estes pedidos.
“A fase atual da epidemia, de grande procura hospitalar, requer que os prestadores expandam a sua capacidade de resposta à Covid-19, o que tem vindo a ser efetuado”, diz fonte oficial do ministério. “A expansão das camas afetas à Covid-19 é dinâmica e depende da evolução epidemiológica e da procura, devendo ocorrer em função das necessidades e ser planeada de forma a garantir os melhores circuitos e fluxos, uma vez que existem outras patologias que requerem tratamento hospitalar.”